23 outubro 2006

Crónica - O amor não dá direito algum

"O amor não dá nenhum direito. Seria importante dizer que dá deveres, mas estes, por vezes… são esquecidos. O amor não dá o direito de impor seja o que for ou de maltratar, seja psicologicamente, moralmente ou até fisicamente aquele ou aquela que amamos. O amor não dá o direito de exigir do amado (ou da amada) que ele seja assim ou de outra forma; que ele se vista daquela maneira; que ele faça como o outro quer ou não…

E, no entanto, é isso que acontece em muitas relações amorosas ou de casal. Um dos dois, porque ama, impõe exigências. Espera que o outro corresponda às suas expectativas, satisfaça os seus desejos, mitigue as suas necessidades. E o outro, porque se sente amado (ou gostaria de ser mais amado ou ainda mostrar toda a beleza do seu amor, para agradar, para não magoar, para não gerar problemas no casal) ,vai aceder aos pedidos e expectativas do primeiro.

“Deverias parar com os estudos; deverias gastar menos; deverias gostar de fazer amor mais vezes comigo; deverias gostar da tua mãe; deverias ser mais simpático; estar mais presente…"

Temos, é claro, homem ou mulher, o direito de ter desejos e aspirações. Temos o direito de desejar partilhar mais com o outro, que ele esteja mais presente, mais atento, mas essas necessidades podem ser expressas através de pedidos abertos e não através de juízos de valor, acusações ou exigências disfarçadas.

É próprio de um desejo poder ser enunciado, o que não significa que ele possa ser sempre concretizado ou satisfeito.

E, contudo, é o que se passa geralmente. Aquele ou aquela que emite um desejo quer que o outro o satisfaça e, por vezes mesmo, fazer sentir àquele ou àquela que resiste o peso da culpa com sentimentos “Se me amasses mesmo; se sentisses mesmo amor por mim, não dirias essas coisas…”.

Ou ainda uma pressão ligada aos papéis que se atribuem ao outro. “Na minha família, a minha mãe nunca discutia sobre o que o meu pai dizia. Ela sabia que estava ali para satisfazer as suas necessidades, para lhe evitar preocupações…”

Apesar das aparências, as relações de força entre homens e mulheres não mudaram muito em 50 anos. Houve mutações e alterações importantes nos modos de vida, no lugar da mulher na sociedade. É evidente que há mais mulheres a aceder a uma autonomia financeira; que muitas fizeram estudos, têm uma abertura de espírito que deveria permitir-lhes evitar a dependência, definir-se melhor, respeitar-se, afirmar-se. Porém, diante delas, há homens que tiveram mães que quase sempre lhes satisfizeram todos os seus desejos; que lhes deixaram acreditar que os desejos deles eram mais importantes que as necessidades delas; que se devotaram, se sacrificaram.

Será necessário, pelo menos, duas gerações para fazer evoluir as estruturas mentais que regem em profundidade as relações entre homens e mulheres.

Mas não é em vão começar… Já!"


Crónica
de
Jacques Salomé,
L'amour ne donne aucun droit
traduzida por José Paulo Santos,
com autorização e proposta expressa do seu autor.

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Jacques Salomé é autor de:

* Aimer et se le dire. Niculescu
* Le courage d'être soi. Curtea Vecche
* Jamais seuls ensemble. Curtea Vecche.

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