04 março 2008

Transumâncias

Aos 15 anos de idade, descobri que desejava ser professor de línguas. Frequentei o 9º ano de escolaridade, já na recém-criada Escola Secundária de Sever do Vouga. Estávamos no ano lectivo de 1984/85. A minha decisão obrigou-me a deixar a terra que me viu nascer para me deslocar para a cidade de Aveiro, ficando alojado num quarto alugado. Ingressei, então, na famosa e prestigiada Escola Secundária José Estêvão, onde concluí o Ensino Secundário, no curso de Humanidades.

Seguiram-se cinco anos de licenciatura em Ensino de Português e Francês, na Universidade daquela mesma cidade, com estágio integrado, efectuado na Escola Secundária Adolfo Portela, em Águeda.

Este ano probatório de "ainda-aluno-e-já-professor", em 1992/93, veio, finalmente, confirmar as minhas opções e o meu trajecto de vida pessoal e profissional.

Ingressei orgulhosamente na carreira docente! Senti uma enorme felicidade, não só por ter atingido uma das etapas que me tinha proposto atingir, mas, sobretudo, por poder realizar o sonho de ser Professor!

Ainda me lembro da minha primeira clássica pasta de fole em cabedal; ainda me lembro do meu Golf em segunda mão; ainda me lembro dos nervosos primeiros instantes e os que lhes seguiram, diante dos "meus primeiros alunos"! Confiaram-me a minha "primeira orquestra" desafinada! Magnífico Allegro!

Embora nunca me tivessem falado sobre o manual do professor transumante, rapidamente tomei consciência das dificuldades inerentes aos longos e penosos trajectos a percorrer para me deslocar para junto dos meus "rebanhos"... Comecei em Sever do Vouga, passei por Paços de Ferreira, Castelo de Paiva, Aveiro, Arouca e encontro-me, actualmente, em Vale de Cambra...

Nesta permanente vida nómada, anos e anos a fio, sinto-me um guardador de rebanhos, um peregrino, um viajante. Nos trajectos com mais de 100 quilómetros diários, de ida e volta, os meus pensamento vagueiam ao sabor da natureza por entre montes e vales...


Severino Pallaruelo Campo, um professor de História e Geografia espanhol, autor do livro Pirineos, Tristes Montes, ilustra este sentimento no contacto com as terras e as gentes: «O homem e os seus rebanhos caminham ao ritmo dos ciclos da natureza; não procuram modificar o clima nem em conseguir elevados níveis de rentabilidade através da aquisição de complexas e dispendiosas tecnologias; modelam a paisagem com técnicas simples e efectivas, adaptam-se ao curso sucessivo das estações. Vivem em harmonia com o meio ambiente e não têm necessidade de violentar a natureza para sobreviver; basta-lhes acariciá-la, e submeter-se ao ritmo que ela própria lhes impõe.»

fonte: http://fotografiadodia.blogspot.com/2007/11/janela-aberta.html


Apesar das longas e por vezes dolorosas distâncias, ia, vinha e permanecia nas escolas por onde passei com enorme satisfação e motivação. Sentia a alegria de ensinar e procurava transmitir e promover o prazer de aprender...

Soube inovar e desenvolver valiosos projectos nas escolas, tanto junto dos meus colegas como na sala de aula com os meus alunos.

Lutei por melhores condições de trabalho, elaborando candidaturas para financiamento para projectos e criando novos espaços de criação, partilha e colaboração, onde professores e alunos pudessem ter acesso às novas tecnologias para melhorar o processo de ensino e aprendizagem.

Lancei desafios a mim próprio e à comunidade escolar, orientei centenas de professores em cursos, seminários, círculos de estudos, oficinas de formação... Estabeleci parcerias com empresas, instituições e individualidades, no sentido de trazer à escola novas dinâmicas e formas inovadoras de participação da comunidade-escola.

Fui sentindo um gradual crescimento da motivação, da satisfação e do bem-estar na escola, tanto de professores, dos pais e encarregados de educação como dos alunos. Senti-me cada vez mais responsável e comprometido com as lideranças que ia assumindo, exigindo de mim um esforço cada vez mais exigente e árduo. Acreditei nos valores e nos princípios mais humanos; nas necessidades e interesses dos que me rodeavam; perturbei com ousadia, algumas vezes, algum status quo, padrões e normas que inviabilizavam o avanço, o progresso necessários para a criação de uma nova escola voltada para o sucesso, a inovação e o empreendedorismo.

Criei clubes de jornalismo; assumi a edição e editoriais de jornais escolares com equipas de alunos e professores; fui colaborador e promotor de publicações, eventos, projectos múltiplos.

Dominado constantemente por fortes crenças optimistas, com objectivos morais sólidos, compreendi, desde cedo, que o processo de mudança era urgente, pelo que procurei construir relações com os órgãos de gestão, funcionários, pais e encarregados de educação e alunos; acreditei que o conhecimento só poderia ser construído em conjunto, na interacção, na partilha e na colaboração. Muitas vezes, senti a necessidade de perturbar o sistema em que me inseria, convicto que as minhas aspirações produziriam efeitos positivos nas acções e nas relações interpessoais. Procurei ser coerente e apelei aos outros o mesmo. Não suporto a incongruência!

Hoje, vejo os meus colegas, as escolas a recuar naquele processo que fomos construindo esforçadamente! Rostos esbatidos, figuras derreadas pelo peso insustentável da coerção, do desprezo e do desrespeito... O pessimismo abateu-se sobre as escolas, a Educação em Portugal.
As vozes rasgam lamentos e negras profecias!

Não foi esta a Educação que sonhei! Quando se esquece e despreza os valores e os princípios humanos mais elevados não é onde desejo ESTAR! Não é neste Sistema de Ensino que desejo permanecer! Não quero ser o responsável pela desumanização e pelo atropelamento da dignidade, dos afectos, do amor, do riso, da alegria, da tolerância, do reconhecimento, da justiça, necessidades e desejos das nossas crianças, jovens, pais e colegas...

O optimismo não anda de mão dada com os que não sabem sonhar e que, pior ainda, tentam matar os sonhos dos outros.

A Escola é o primeiro e o último lugar onde mais desejo estar para exercer com alegria uma das mais belas profissões do mundo: PROFESSOR

Passo a aplicar a linguagem da Comunicação Não violenta:
Perante a agitação, o conflito (observação), sinto-me frustrado, triste e indignado (sentimento), porque preciso de encontrar paz, serenidade e bem-estar nas nossas escolas (necessidade), pelo que formulo um apelo àqueles que podem devolver à Educação, aos Professores, aos Alunos e Pais, à sociedade Portuguesa esta harmonia tão necessária às actuais e futuras gerações: será possível deixar-nos fazer o que melhor sabemos, ou seja, aprender e ensinar? (pedido)


O pessimismo é uma profecia que se cumpre.
João Lobo Antunes, programa Prós e Contras, RTP1, 03 de Março 2008



5 comentários:

JMA disse...

Chegará, a serenidade e o optimismo. É só uma questão de tempo, persistência e paciência.

José Paulo Santos disse...

Viva, JMA! São tempos de mudança e nem sempre possuimos os recursos, as ferramentas necessárias para deixar fluir... Importa que cada um tente fazer o seu melhor, tal como o beija-flor deste blogue!

Não desistir!

Abraço amigo.

Pedro Branco disse...

Olá amigo Zé Paulo.

Inevitavelmente andamos todos a falar da profissão, cada um no seu discurso e aproveitando a onda social para as suas "indignações". Não contesto as lutas. Porque contesto a falta de inteligência e, a meu ver, o Ministério e os Sindicatos, não souberam valer-se da sua inteligência para conseguirem o que todos querem - uma Escola melhor, onde os alunos e os professores sejam mais felizes e tenham mais sucesso. Há dúvida nisso? Parece-me que não.
Creio que estes trabalhadores intelectuais não estão a saber utilizar a sua ferramenta de eleição na procura das necessárias reformas.
Necessárias porque todos sabemos que ao longo de décadas se foram instalando vícios e até coorporativismos que em nada contribuem para a melhoria das escolas e que de maneira nenhuma revelam inteligência e competência por parte de muitos professores. Que o digam os alunos!
Para mim, sempre os alunos. É por eles que estamos a lutar, diriam todos. Pois... será? Ou este não é mais que um valioso e socialmente correcto argumento para mais uma vez não se mexer nas feridas?
Talvez o facto de ter passado por Empresas ou ter estado sempre no Ensino Particular (porque recusei sempre as regras do Público, não por descordar com ele, evidentemente) é que acho que compreendo esta situação nestes dois lados a lutar pelos mesmos objectivos.
Penso que uma real mudança passa pelos professores, pelas escolas onde eles estão, pela sua segurança em termos de carreira, pela exigência, pelo envolvimento, pela avaliação (claro), por um grande números de situações e processos com esse tal objectivo comum - os alunos.

Obviamente que se pudesse, estaria hoje na Marcha dos Professores, para exigir uma nova dinâmica nestes processos reformistas.

Um abraço solidário.

Anónimo disse...

Peas crianças tudo...
Pela luta subtil nada,nunca...
Pela responsabilidade sempre...
Pelo profissionalismo eternamente professor,amigo,confidente...

Anónimo disse...

Subscrevo tudo o que diz!
Amanhã mais uma "batalha" na direcção de uma pequena conquista: um escola digna, uma profissão digna!

Catarina